quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Cidadão urbanense

 Que país é esse? Que país é esse?, dizia o trecho de uma famosa música do extinto grupo Legião Urbana no rádio do meu carro. Logo a definição da palavra urbana veio à minha mente, Urbana: próprio da cidade - população, paisagem -, que tem caráter de cidade.
 Ao parar num farol, dei de cara com um caráter desta cidade que, na realidade, estava mais para caricatura: um homem negro, sentado na calçada, com as roupas sujas, unhas compridas, tocando viola. Não me pediu esmola, não me vendeu balas, nem sequer levantou os olhos em minha direção, nem notou que eu abaixara o vidro para ouvi-lo enquanto o farol fechava. Ele tocava Águas de Março, do maestro Tom Jobim. A expressão em seu rosto era um misto de alegria e tristeza. A alegria por tocar uma bela canção e a tristeza de saber exatamente o que aquelas palavras representavam.
 É o fundo do poço, é o fim do caminho/ No rosto o desgosto, é um pouco sozinho. Já ouvira aquela música milhares de vezes, mas foi a primeira vez que ela fez algum sentido pra mim.
 Sem dúvida, aquele homem negro, de rosto sofrido, representa uma legião urbana, de tantos outros desta cidade que são esquecidos, taxados de bêbados, vagabundos, andarilhos, drogados, mendigos. São mais urbanos do que qualquer um de nós.
 Integraram-se a essa cidade sem terem consciência disso, fazem parte da inclusão de um sistema que explora sua imagem quando precisa de notícia.
 Que país é esse? Que país é esse que faz da favela da roçinha um lugar de turismo para gringos?
 Venham conhecer a maior favela do planeta! Vejam que exótica! Michael Jackson gravou um clipe aqui; venham tirar fotos de garotos cheirando cola... Depois, por favor, motorista, pare no Leblon para degustarmos a famosa caipirinha brasileira com muito gelo e limão, ao som de um funk qualquer.
 Como pode, meu Deus, um país onde um artista de verdade tem como palco o chão de uma calçada, e sua platéia uma avenida, tocando música de qualidade, mas abafada com o barulho de buzinas? Um país de grandes compositores e maestros como Tom Jobim, compartilhando espaços na mídia ao lado de tantas porcarias.
 Lá está ele: o homem com sua viola na calçada. Ele apareceu na tevê, mas não perguntaram seu nome, não tocaram sua música. Ele não serve para a mídia, é pobre e, além de tudo, é negro. Não serve para a política, não vota. Não serve pro trabalho, já passou dos quarenta. Não por ler esta crônica, é analfabeto. Não tem casa, não tem carteira, não tem amigos, não tem futuro, não tem beira... Mas tem a viola, sua companheira, e toca, dentro do coração de quem passa naquela avenida e, com os olhos secos por não ter mais do que chorar, termina a canção:
 São as águas de março fechando o verão/ É a promessa de vida no teu coração.
 Esse é o cidadão urbanense, que pertence a este chão, não se sabe onde começa o chão, onde termina ele; são um só. São gente.

Autora: Bibi Almeida
Livro: Retratos Urbanos (pág 141/142)

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A primeira vez que eu vi meu pai


Autora: Márcia Leite
Páginas: 111
Editora: Artes e Ofícios

"Duas histórias tão diferentes e tão a mesma: a descoberta do que se quer e do que se pode ser, apesar das ausências."


 A primeira vez que eu vi meu pai conta a história de dois amigos, Daniel e Lucas, e ambos possuem problemas relacionados a imagem paterna. De um lado, Lucas lida com um pai que tem problemas com álcool e que é agressivo quando está sob o efeito do mesmo; e do outro, Daniel convive com a ausência de seu pai, que não soube lidar com a responsabilidade de ter uma família quando jovem e foi embora, deixando para trás o filho e a esposa.
 Ao decorrer do livro, Daniel conta à Lucas como conheceu seu pai aos oito anos, e o choque que levou quando ele apareceu de repente em sua porta. Descreveu como se sentiu quando soube o motivo dele ter partido e como encarou o fato de saber que ele mora em outro país e tem outra família. Do ponto de vista de Lucas, Daniel tem sorte por não "ter" um pai, pois a relação que ele tem com o seu é conturbada, marcada por discussões, gritos e tapas.

 Ou seja, a autora retrata bem a realidade do mundo ultimamente, porém, através da visão dos garotos, que desde cedo tem que aprender a conviver com a falta de algo muito importante que é fundamental no crescimento de qualquer criança: o afeto paterno.
 O desfecho da história de Daniel trás a tona uma questão importante: afinal, devemos perdoar aquele que nos fez mal e tentar seguir em frente?