quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Um pouco a cada dia

  As crianças fazem barulho lá fora. Uma algazarra de meninos que entra pela janela, trazida pela brisa da tarde, e faz da cortina, fina e branca, uma bailarina que se desenha no mormaço da sala. O sono de depois do almoço, encantado pela dança suave da cortina, faz o barulho dos meninos que brincam lá fora, cada vez mais distante. Menino, que chega suado da escola, bochechas vermelhas, olhos brilhantes e histórias que querem sair da boca, ganhar vida, histórias de menino.
  Crianças estão por toda parte. Na minha casa e provavelmente na sua, na janela dos carros, nas praças, sob as pontes, nos barracos, nos jardins, na escola, no trabalho. Crianças com os mais diversos destinos nascem todos os dias, todas as horas. Crianças ricas vão à escola, à Disney, brincam com jogos eletrônicos, imitam seus ídolos da tevê, comem, bebem, dormem protegidos das intempéries da vida. Crianças pobres vão ao trabalho, pedem uma moeda, tentam vender um chiclete no semáforo fechado, praticam delitos, cheiram cola, esmolam amor, entorpecem o futuro que não existe. Sempre foi mais ou menos assim. A escola nunca foi alternativa para os filhos de pobres, afinal eles deveriam ser úteis na lavoura, produtivos desde pequenos, receita e não despesa, uma ajuda no apertado orçamento da família, quando não a própria fonte de subsistência. Educação é coisa de rico.
  Uma angústia nos ronda, na busca  de uma nova ética para a infância. Que adultos estamos formando para o Brasil? Que destino daremos para a voz rouca que bate na janela do carro? São tantas e tantas vezes que nem ligamos mais para a tristeza da cena. Culpa da pobreza, da exclusão social, do governo, de todo mundo, menos sua e menos minha.
  Tremendo abismo se dilata entre entre nós e eles. Nossas crianças navegam na internet. As deles, quando muito, aprendem a desenhar o nome com as mãos calejadas da última colheita. Crianças estão à mercê da desagregação familiar, estimulada pelas dificuldades dos adultos malformados diante das agruras da cidade grande, vítimas fáceis da globalização, da sociedade de consumo, da exploração e da injusta distribuição de renda. Pode-se  sentir ainda um vinco escravista nas crianças ricas, que ordenam e o adulto obedece. Uma deformação da sociedade brasileira, mestiça e arrogante nos seus extratos, que se observa nos mínimos gestos de todos nós. Está na cultura, escrito na história de senhores e escravos. Mas nem por isso a solução é aceitar a aberração como destino, nem se conformar com o trabalho infantil, nem justificar criança fora da escola. É preciso recolocar a vida nos eixos, cuidar do futuro por meio dá formação de cidadãos. Resgatar a dignidade e assegurar que a criança brinque, se alimente e estude na escola formal, não na escola da rua, que desenha um futuro que não queremos, que hoje já nos assusta na violência urbana com estatísticas de guerra civil, que nos prende em casa e banaliza a vida e morte.
  As crianças brincam lá fora. A noite começa a cair. Hora de voltar para a casa, tomar banho, terminar o dever complicado pela matemática. Hora de jantar, da conversa amiga com o pai, a mãe, o irmão e quem mais estiver. Hora das histórias de todos, no relato do dia, com suas alegrias, tristezas, vitórias e aprendizado. Hora do sono tranquilo, campo fértil do sonho que se realiza acordado, um pouco a cada dia.


Autor: Luiz Márcio Ribeiro Caldas Junior
Livro: Você tem medo do quê?
Págs: 93 a 95

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